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sábado, 23 de fevereiro de 2013

Post 007 - O Verdadeiro Eu


Depois de extensa discussão sobre o ego (nosso falso “eu”), em nossas três postagens anteriores, chegou a hora de investigarmos a existência do Eu verdadeiro, nosso Eu superior. Ele existe mesmo? É possível experimentá-lo, vivenciá-lo?
Como vimos no post 003, é possível observar e ter uma percepção clara do ego em ação: aquela vozinha que vive tagarelando em nossa mente, na primeira pessoa do singular: eu preciso disso, eu acho que ela é insuportável, eu adoro aquilo, eu detesto esse cara, etc.

Para perceber isso, é preciso que você se concentre um pouco, que consiga acalmar a mente, que aguce sua atenção e foque no momento presente. Então vai notar que há outro “Eu”, um pouco acima, que consegue observar todos aqueles pensamentos na primeira pessoa do singular, que acabamos de exemplificar. Se você é aquele “eu” naqueles pensamentos, então quem é este que observa tais pensamentos?  
Quando nos desenvolvemos no plano espiritual, adquirimos acesso cada vez maior ao nosso “Eu superior”, que é um estado de consciência mais elevado e não poluído pelos processos mentais. É um estado de plena atenção, vivido totalmente no momento presente, sem sinais de ansiedade, raiva ou medo.

É muito importante que entendamos esse nosso Eu superior, caso contrário não faria sentido um esforço para deixar o falso eu para trás. E esse esforço não é pequeno.
Jesus, em seu minucioso ensino sobre nossa evolução espiritual, nos pede esse esforço:

“Se alguém quiser ser me seguir, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e me siga”.
Em psicologia, o ‘si mesmo’ é uma denominação do ego. E ao pedir que o deixemos para trás, Jesus nos propõe um difícil desafio. Mas como livrarmo-nos dele, (ou, pelo menos, como contê-lo de modo a não sermos dominados por ele) e ganharmos com isso o acesso ao Eu verdadeiro?

Em todas as grandes tradições espirituais, seus mestres – Krishina, Buda, Rumi – pediram a mesma coisa que Jesus, e seus seguidores encontraram métodos e técnicas para isso: as diversas formas de meditação, no hinduísmo e no budismo, os exercícios espirituais dervixes, no islamismo, são exemplos de métodos para conter o ego e ascender a níveis superiores de consciência. No cristianismo, que conheço melhor, diversas escolas desenvolveram técnicas para acalmar o ego e mantê-lo em seu “devido lugar”. Já no século IV depois de Cristo, algumas técnicas eram ensinadas pelos “pais do deserto”, em seus precários monastérios no Sinai e no Egito. A tradição do Hesicasmo, nas igrejas cristãs ortodoxas, vem do século V. A “Nuvem do Não Saber”, um clássico cristão que apareceu ainda no século XIV na Bretanha, é um livro que trata exclusivamente disso. Outras escrituras antigas mostram que essas técnicas, ou formas de oração, eram conhecidas em comunidades cristãs primitivas, mas de alguma forma se perderam. Nos dias de hoje, diversas comunidades cristãs estão resgatando aquelas práticas, que são conhecidas como oração contemplativa, oração centrante, ou simplesmente meditação cristã.
Felizmente isso está acontecendo, porque me parece que a descoberta do Eu verdadeiro era um ponto fundamental no ensino de Jesus. Em outro ponto ele diz:
de que adianta alguém ganhar o mundo, e perder sua verdadeira vida?”

Sem dúvida, Jesus refere-se à prioridade de se obter acesso ao verdadeiro Eu: sem isso, todas as demais conquistas serão inúteis.
Ao contrário do ego, que pode ser percebido e observado, o Eu verdadeiro é nossa luz interior e não se torna objeto de nossa percepção. Podemos saber que estamos nele, mas não podemos observá-lo. Quando estamos nele, estamos num estado de plena unidade, não há “outro” a observar. Toda dualidade desapareceu e a unidade nesse nível é o próprio Cristo. Não podemos separar o Cristo do nosso Eu verdadeiro, porque esse Eu está imerso no Cristo, assim como o Eu verdadeiro dos outros. Assim, nesse estado de unidade, não há separação, não há “outro” para observar.

O apóstolo Paulo faz alguma observação expressiva sobre essa experiência união, de imersão total, quando estamos em nosso Eu superior:
“... pois n'Ele vivemos, nos movemos e existimos At. 17,28

Vejo uma correlação muito forte entre o conceito de Eu superior e o conceito de Reino de Deus, no que diz respeito à não localidade, ao fato de serem não-observáveis.
Jesus de Nazaré utilizou extensivamente o conceito de Reino de Deus (ou Reino dos Céus), e já no seu primeiro pronunciamento, afirmou: “O Reino do Céu está perto”.

Dentre muitos ensinos e parábolas explicativas sobre o Reino, uma é particularmente objetiva quanto à não localidade:
“Os fariseus perguntaram a Jesus quando chegaria o Reino de Deus. Jesus respondeu: O reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: "Está aqui" ou: "Está ali", porque o Reino de Deus está no meio de vós”.  Lc 17,20-21

Se você juntar a característica de não localidade com as dezenas de tentativas - por meio de comparações, parábolas e exemplos – que Jesus fez para explicar o que é o Reino, talvez conclua, como eu, que o Reino e o Eu superior são na verdade estados elevados de consciência, e que talvez sejam a mesma coisa. Mas isso fica para a Parte II deste blog.
Para encerrar, voltemos ao Eu verdadeiro. Nós o descrevemos acima como um estado de consciência mais elevado e não poluído pelos processos mentais. Todos nós, mesmo que por breves momentos, já tivemos experiências de plenitude, êxtase, amor irradiante e compaixão, não poluídos por sinais de ansiedade, raiva ou medo. É um estado de plena atenção, vivido totalmente no momento presente, em total conexão. Mais do que isso, notamos que uma misteriosa fonte de amor surge em nós. O amor transborda de nós e esse amor transbordante atrai o amor dos outros.

Sempre tive, assim como muitos amigos e conhecidos, grande dificuldade de aceitar a possibilidade de amar como Jesus ensinou. “Ama o teu próximo como a ti mesmo” já é bem difícil, mas é possível acatar como um ideal a atingir. Jesus, entretanto, vai além, num ensino que para muitos parece absolutamente radical. Vejam, por exemplo, em Mateus, 5:
Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém faz um processo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa! Se alguém te obriga a andar um quilometro, caminha dois quilômetros com ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pedir emprestado. Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo! Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem!”

É duro se dispor a seguir tais ensinamentos! Tenho a impressão que a grande maioria dos cristãos se conforma e admite que não vá conseguir cumprir, mas continua considerando-se cristã.  Amar os inimigos e orar pelos que nos perseguem parece quase impossível para quem vive no estado mais comum de consciência, atrelado ao ego. Mas lembremos de que, com muito mais insistência, Jesus mostra o caminho para estados mais elevados de consciência: O Reino, o Eu superior.
No evangelho de Tomé, 25, o mandamento do amor é expresso de forma encantadora:

Disse Jesus: “Ama teu irmão como tua alma, protege-o como a pupila de teus olhos”.
Para seguir o ensinamento de Jesus sobre o amor, precisamos encontrar os outros, não ao nível do ego, mas ao nível do Eu verdadeiro, onde nós somos UM com os outros, UM em cristo, e aí somos capazes de amar de verdade, como Jesus ensinou. Somente quando acessamos nosso Eu verdadeiro, quando chegamos a esse nível de consciência, podemos amar o outro com amor verdadeiro, com compaixão, tolerância e sem julgar. O mesmo se pode dizer quanto ao perdão: só podemos perdoar de verdade quando nos livramos do nosso ego.

Falando de desafios difíceis, Jesus vai ainda além: em Mateus 5,48, Jesus pede nada menos que o seguinte: “Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu”.
Juntando com todos os ensinamentos citados acima, parece realmente desanimador. Pedir a perfeição, como a do Pai celeste, para um pobre ser humano, parece simplesmente absurdo.

Ou Jesus está pedindo um absurdo, ou ele mostra também o caminho de uma transformação radical, a partir da qual esses ensinamentos são factíveis. E ele mostra. E reconhece que essa transformação é tão radical que equivale a um novo nascimento, como na conversa com Nicodemos: “Não te maravilhes de eu te dizer: é preciso nascer de novo”.
Sim, ascender a esse nível de consciência do Eu superior é uma transformação tão radical que equivale a um novo nascimento. O apóstolo Paulo, que experimentou isso, dá seu depoimento: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma realidade nova apareceu”.

Se estivermos nesse novo estado de consciência, em união com o Cristo, estamos vivendo uma nova realidade, em que aqueles ensinamentos de Jesus, que pareciam absurdos para quem está atrelado ao ego, são perfeitamente praticáveis.
Só poderemos evoluir nesse sentido se pudermos aceitar que somos essencialmente bons. E reconhecer isso é muito difícil, por dois motivos principais: primeiro, porque a maioria das igrejas cristãs tenta continuamente nos convencer de que somos essencialmente pecadores e com inclinação para o mal. Segundo, porque o reconhecimento de nossa “bondade” essencial só pode ocorrer a partir do nosso Eu verdadeiro, quando percebemos nossa plena unidade com o Cristo. Portanto, o pré-requisito para amar como Jesus nos pede é ter acesso ao nosso Eu superior. E isso não é pouca coisa!

Ascender a este novo estado de consciência, tornar-se uma nova criatura, vivenciar o Eu superior, a união com o Cristo, são metas realizáveis.
Disciplinar e conter o ego são apenas um primeiro passo. Quando vivenciamos nosso Eu superior, podemos finalmente descobrir QUEM SOMOS NÓS. Podemos então experimentar o Reino (que está dentro de nós). Vamos então entender porque Jesus disse: “eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” e também “vos ensino isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa”.

Na segunda parte deste blog vamos aprender mais sobre a experiência do Reino.

 

FIM DA PARTE I

 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Post 006- O Ego


Ego é uma palavra latina que significa “eu”. O ego humano é uma criação da mente, uma imagem mental que construímos sobre nós mesmos. Estudos sobre a evolução do sistema cognitivo humano explicam como a criança vai, aos poucos, criando uma identificação de seus pensamentos com sua percepção inicial desse “eu”. Num passo seguinte, adquire o conceito de “meu” e daí rapidamente aquilo que é “meu” passa também a fazer parte do “eu”. Essa identificação do “eu” com objetos evolui para a identificação com outras posses: pessoas (“minha” mulher, “meu” amigo) “minhas” ideias, “minhas” crenças. Outros elementos são mais tarde incorporados pela mente ao conceito do “eu”: nacionalidade, crenças, valores, religião, propriedades, partido político, etc.
A identificação dessa massa de pensamentos criada pela mente, inclusive nossa história, nossas memórias, nossas “posses”, com a imagem mental que criamos de nós mesmos chama-se egoísmo.

Como essa imagem de nós mesmos é uma construção da mente, muitas tradições espirituais a descrevem como uma espécie de ilusão. Nas tradições espirituais do oriente, o estado de ser atrelado à crença ilusória de que nós somos o nosso ego é conhecido como Maya ou Samsara.

Na verdade, o ego é um falso “eu”.
Eckhart Tolle chega a dizer que, à medida que o ego se desenvolve no indivíduo, este se torna, em certa medida, psicologicamente insano, quando se leva em conta que o ego tende a produzir uma natureza mental hiperativa e compulsivamente autocentrada.

Já falamos na corrente de pensamentos em posts anteriores. O Ego é em geral associado com a ideia de tempo e com a mente, que pensa compulsivamente para se assegurar de sua existência futura, em vez de simplesmente ter a consciência de si mesma e do momento presente.
Essa “necessidade de fazer” de “estar ativo” para poder existir, cria essa corrente ininterrupta e compulsiva de pensamentos que acaba impedindo o indivíduo de ser consciente, de estar atento, de perceber sua verdadeira natureza.

O que nos interessa aqui é que, nesse contexto, o egoísmo bloqueia o desenvolvimento espiritual e a possibilidade de uma vida consciente. E estamos, nesse blog, interessados em descobrir como se dá essa transformação que nos leva a descobrir QUEM SOMOS NÓS e como podemos ter acesso ao nosso verdadeiro EU.
Para isso, precisamos descobrir como é possível nos libertarmos do pensamento compulsivo praticado pelo falso “eu” criado pela mente. Precisamos entender que o pensamento sem consciência é a grande tragédia e maior causa de infelicidade para a maioria das pessoas. E não há dúvidas de que nossa identificação com o ego é inconsciente.
Portanto, volto a enfatizar nosso entendimento de egoísmo: não estamos usando aqui os conceitos mais comumente encontrados, que na verdade são consequências ou manifestações do egoísmo: indiferença, arrogância, mesquinharia, dificuldade em compartilhar, etc.

A mente cria uma corrente, uma massa de pensamentos, que inclui nossa história, nossas memorias, nossas “posses”, nossos desejos e aversões, etc. O egoísmo é a identificação dessa massa de pensamentos com a imagem mental que criamos de nós mesmos.
Vejam: não há nada de errado em possuir um ego. Precisamos dele para viver em sociedade. Mas meu ego não é quem eu sou. O problema acontece quando nos identificamos totalmente com ele – e o desafio é conseguir evitar isso. Porque o ego opera de um modo que nos leva a comportamento incompatível e oposto aos ensinamentos recomendados pelas grandes tradições espirituais.

Vejamos algumas características do ego:            
- o ego quer sempre ser especial, de preferência ser superior aos outros. Essa necessidade de ser especial também leva, invariavelmente, as pessoas egocêntricas a precisarem constantemente ser o centro das atenções. O ego quer ser o primeiro, quer aparecer, quer dominar.

- se não puder ser especial, o ego se contenta em ser mais qualquer coisa. Até mais miserável ou mais sofredor! Tem uma conhecida historinha de uma comadre dizendo para a outra: “você não imagina a dor de cabeça que estou sentido desde hoje cedo!” A outra replica:                          desde hoje cedo? Pois eu estou com uma terrível dor de cabeça há dias!” Disputa de egos...
- O ego quer ganhar, quer receber, em vez de dar. O ego tem o desejo de ter, de acumular, de se apegar, de possuir e nunca de ceder ou de abrir mão...

- o ego gera desejos: de avançar, de conseguir mais, de possuir mais, de saber mais...
- o ego tem necessidade de estar certo, de ter razão o tempo todo.

- o ego precisa de conflito, e para eu poder estar certo, o outro precisa estar errado...

- o ego quer ser exclusivo. Os publicitários há muito já entenderam isso e exploram fortemente essa aspiração do ego: já reparou quanto eles usam o atributo exclusivo para vender produtos?  Nosso ego em geral nos leva a estar dispostos a pagar mais e mais pela exclusividade!
- o ego enfatiza o tempo todo, a diferença, a separação entre “eu” e o “outro”.

- à medida que o ego quer reter tudo, pode fazê-lo mesmo à custa dos outros. O ego tende a se por sempre à frente, a deixar os outros para trás.
- o ego adora as situações de conflito, oposição e/ou confrontação com os outros. E todos os tipos de conflito agradam o ego: entre nações, entre religiões, entre times de futebol, partidos políticos, etc.
- o ego tem necessidade de ter inimigos ou, pelo menos, adversários. O ego apoia-se no paradigma NÓS vs. ELES.

Como vimos no início, desde sua formação o ego tende a se identificar com as formas criadas pelo pensamento. Por isso o ego se sentirá ofendido se você criticar seu carro, sua casa, sua roupa. Porque essas posses foram incorporadas ao ego, a esse falso “eu” criado pela mente. O mesmo acontece se você criticar suas crenças ou suas opiniões: o ego sente-se genuinamente agredido!
Depois desta descrição simplificada das características do ego eu sugiro que você releia o post 004.  Acho que fica claro com isso que a total identificação com o ego, que ocorre com a maioria das pessoas, torna muito difícil, senão impossível, que alguém possa seguir os ensinamentos de Jesus de Nazaré, de Rumi, do Buda e de outros grandes mestres espirituais.

Repare que o ego se manifesta em todas as esferas de nossa vida: profissional, afetiva, amorosa, espiritual. Os efeitos do ego representam perigo inclusive no desenvolvimento espiritual. Existem diversos relatos do que se pode chamar “espiritualidade egoísta”. Por exemplo, o ego adora competir: “sou mais ‘espiritualizado’ do que ele”. O desejo de possuir Deus, de desfrutar a presença de Deus, de ‘reter para mim’ o prazer da interação com o divino são manifestações do ego. João da Cruz, importante místico cristão, dizia que para evoluir espiritualmente é preciso se livrar de tudo, até do desejo por Deus (mas não do amor de Deus).
O ego é um fator importante na estruturação de nossa sociedade tecnológica e consumista. O lado tecnológico da sociedade retrata a tendência do ego de “controlar tudo”. O lado consumista retrata a tendência do ego de “desejar possuir mais”.

Entretanto, não tenho dúvidas de que o Homem tem uma tendência, uma inclinação natural, que é mais forte do que a tendência de se identificar com o ego. É uma inclinação profunda, atávica, de evoluir na direção de Deus, de buscar uma conexão com o Criador. E esta é a grande força que viabiliza a emergência do Eu verdadeiro. Essa é a força que permite que alguns de nós consigamos superar a identificação com o ego, consigam se livrar desse falso “eu” e ter acesso ao Eu superior, o Eu verdadeiro. Assim é possível descobrir, finalmente, quem somos nós. No próximo Post.