Depois de
extensa discussão sobre o ego (nosso falso “eu”), em nossas três postagens anteriores,
chegou a hora de investigarmos a existência do Eu verdadeiro, nosso Eu
superior. Ele existe mesmo? É possível experimentá-lo, vivenciá-lo?
Como vimos
no post 003, é possível observar e ter uma percepção clara do ego em ação:
aquela vozinha que vive tagarelando em nossa mente, na primeira pessoa do
singular: eu preciso disso, eu acho que ela é insuportável, eu adoro aquilo, eu detesto esse cara, etc.
Para
perceber isso, é preciso que você se concentre um pouco, que consiga acalmar a mente,
que aguce sua atenção e foque no momento presente. Então vai notar que há outro
“Eu”, um pouco acima, que consegue observar todos aqueles pensamentos na primeira
pessoa do singular, que acabamos de exemplificar. Se você é aquele “eu”
naqueles pensamentos, então quem é este que observa tais pensamentos?
Quando nos
desenvolvemos no plano espiritual, adquirimos acesso cada vez maior ao nosso
“Eu superior”, que é um estado de consciência mais elevado e não poluído pelos
processos mentais. É um estado de plena atenção, vivido totalmente no momento
presente, sem sinais de ansiedade, raiva ou medo.
É muito
importante que entendamos esse nosso Eu superior, caso contrário não faria
sentido um esforço para deixar o falso eu para trás. E esse esforço não é
pequeno.
Jesus, em
seu minucioso ensino sobre nossa evolução espiritual, nos pede esse esforço:
“Se alguém quiser ser me seguir, negue-se
a si mesmo, tome sua cruz e me siga”.
Em
psicologia, o ‘si mesmo’ é uma denominação do ego. E ao pedir que o deixemos para
trás, Jesus nos propõe um difícil desafio. Mas como livrarmo-nos dele, (ou,
pelo menos, como contê-lo de modo a não sermos dominados por ele) e ganharmos
com isso o acesso ao Eu verdadeiro?
Em todas as
grandes tradições espirituais, seus mestres – Krishina, Buda, Rumi – pediram a
mesma coisa que Jesus, e seus seguidores encontraram métodos e técnicas para
isso: as diversas formas de meditação, no hinduísmo e no budismo, os exercícios
espirituais dervixes, no islamismo, são exemplos de métodos para conter o ego e
ascender a níveis superiores de consciência. No cristianismo, que conheço
melhor, diversas escolas desenvolveram técnicas para acalmar o ego e mantê-lo
em seu “devido lugar”. Já no século IV depois de Cristo, algumas técnicas eram
ensinadas pelos “pais do deserto”, em seus precários monastérios no Sinai e no
Egito. A tradição do Hesicasmo, nas
igrejas cristãs ortodoxas, vem do século V. A “Nuvem do Não Saber”, um clássico
cristão que apareceu ainda no século XIV na Bretanha, é um livro que trata
exclusivamente disso. Outras escrituras antigas mostram que essas técnicas, ou
formas de oração, eram conhecidas em comunidades cristãs primitivas, mas de
alguma forma se perderam. Nos dias de hoje, diversas comunidades cristãs estão
resgatando aquelas práticas, que são conhecidas como oração contemplativa, oração
centrante, ou simplesmente meditação
cristã.
Felizmente
isso está acontecendo, porque me parece que a descoberta do Eu verdadeiro era
um ponto fundamental no ensino de Jesus. Em outro ponto ele diz:“de que adianta alguém ganhar o mundo, e perder sua verdadeira vida?”
Sem dúvida,
Jesus refere-se à prioridade de se obter acesso ao verdadeiro Eu: sem isso,
todas as demais conquistas serão inúteis.
Ao contrário
do ego, que pode ser percebido e
observado, o Eu verdadeiro é nossa luz interior e não se torna objeto de nossa
percepção. Podemos saber que estamos nele, mas não podemos observá-lo. Quando
estamos nele, estamos num estado de plena unidade, não há “outro” a observar. Toda
dualidade desapareceu e a unidade nesse nível é o próprio Cristo. Não podemos
separar o Cristo do nosso Eu verdadeiro, porque esse Eu está imerso no Cristo,
assim como o Eu verdadeiro dos outros. Assim, nesse estado de unidade, não há
separação, não há “outro” para observar.
O apóstolo Paulo
faz alguma observação expressiva sobre essa experiência união, de imersão total,
quando estamos em nosso Eu superior:
“... pois n'Ele vivemos, nos movemos
e existimos” At. 17,28
Vejo uma
correlação muito forte entre o conceito de Eu superior e o conceito de Reino de Deus, no que diz respeito à não
localidade, ao fato de serem não-observáveis.
Jesus de
Nazaré utilizou extensivamente o conceito de Reino de Deus (ou Reino dos Céus), e já no seu primeiro
pronunciamento, afirmou: “O Reino do Céu
está perto”.
Dentre
muitos ensinos e parábolas explicativas sobre o Reino, uma é particularmente
objetiva quanto à não localidade:
“Os fariseus perguntaram a Jesus
quando chegaria o Reino de Deus. Jesus respondeu: O reino de Deus não vem
ostensivamente. Nem se poderá dizer: "Está aqui" ou: "Está
ali", porque o Reino de Deus está no meio de vós”. Lc 17,20-21
Se você juntar
a característica de não localidade com as dezenas de tentativas - por meio de
comparações, parábolas e exemplos – que Jesus fez para explicar o que é o Reino,
talvez conclua, como eu, que o Reino e o Eu superior são na verdade estados
elevados de consciência, e que talvez sejam a mesma coisa. Mas isso fica para a
Parte II deste blog.
Para
encerrar, voltemos ao Eu verdadeiro. Nós o descrevemos acima como um estado de
consciência mais elevado e não poluído pelos processos mentais. Todos nós,
mesmo que por breves momentos, já tivemos experiências de plenitude, êxtase,
amor irradiante e compaixão, não poluídos por sinais de ansiedade, raiva ou
medo. É um estado de plena atenção, vivido totalmente no momento presente, em total
conexão. Mais do que isso, notamos que uma misteriosa fonte de amor surge em
nós. O amor transborda de nós e esse amor transbordante atrai o amor dos
outros.
Sempre tive,
assim como muitos amigos e conhecidos, grande dificuldade de aceitar a possibilidade
de amar como Jesus ensinou. “Ama o teu
próximo como a ti mesmo” já é bem difícil, mas é possível acatar como um
ideal a atingir. Jesus, entretanto, vai além, num ensino que para muitos parece
absolutamente radical. Vejam, por exemplo, em Mateus, 5:
“Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e
dente por dente’. Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal.
Pelo contrário: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a
esquerda! Se alguém faz um processo para te tirar a túnica, dá-lhe também a
capa! Se alguém te obriga a andar um quilometro, caminha dois quilômetros com
ele! Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pedir emprestado. Ouvistes
o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo! Eu, porém,
digo-vos: amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem!”
É duro se dispor
a seguir tais ensinamentos! Tenho a impressão que a grande maioria dos cristãos
se conforma e admite que não vá conseguir cumprir, mas continua considerando-se
cristã. Amar os inimigos e orar pelos
que nos perseguem parece quase impossível para quem vive no estado mais comum
de consciência, atrelado ao ego. Mas lembremos de que, com muito mais insistência,
Jesus mostra o caminho para estados mais elevados de consciência: O Reino, o Eu
superior.
No evangelho
de Tomé, 25, o mandamento do amor é expresso de forma encantadora:
Disse Jesus: “Ama teu irmão como tua
alma, protege-o como a pupila de teus olhos”.
Para seguir
o ensinamento de Jesus sobre o amor, precisamos encontrar os outros, não ao
nível do ego, mas ao nível do Eu verdadeiro, onde nós somos UM com os outros,
UM em cristo, e aí somos capazes de amar de verdade, como Jesus ensinou.
Somente quando acessamos nosso Eu verdadeiro, quando chegamos a esse nível de
consciência, podemos amar o outro com amor verdadeiro, com compaixão, tolerância
e sem julgar. O mesmo se pode dizer quanto ao perdão: só podemos perdoar de
verdade quando nos livramos do nosso ego.
Falando de
desafios difíceis, Jesus vai ainda além: em Mateus 5,48, Jesus pede nada menos
que o seguinte: “Portanto, sede perfeitos
como é perfeito o vosso Pai que está no Céu”.
Juntando com
todos os ensinamentos citados acima, parece realmente desanimador. Pedir a
perfeição, como a do Pai celeste, para um pobre ser humano, parece simplesmente
absurdo.
Ou Jesus
está pedindo um absurdo, ou ele mostra também o caminho de uma transformação
radical, a partir da qual esses ensinamentos são factíveis. E ele mostra. E
reconhece que essa transformação é tão radical que equivale a um novo
nascimento, como na conversa com Nicodemos: “Não te maravilhes de eu te dizer: é preciso nascer de novo”.
Sim,
ascender a esse nível de consciência do Eu superior é uma transformação tão
radical que equivale a um novo nascimento. O apóstolo Paulo, que experimentou
isso, dá seu depoimento: “Se alguém está
em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma realidade
nova apareceu”.
Se estivermos
nesse novo estado de consciência, em união com o Cristo, estamos vivendo uma
nova realidade, em que aqueles ensinamentos de Jesus, que pareciam absurdos
para quem está atrelado ao ego, são perfeitamente praticáveis.
Só poderemos
evoluir nesse sentido se pudermos aceitar que somos essencialmente bons. E
reconhecer isso é muito difícil, por dois motivos principais: primeiro, porque a maioria das igrejas
cristãs tenta continuamente nos convencer de que somos essencialmente pecadores
e com inclinação para o mal. Segundo,
porque o reconhecimento de nossa “bondade” essencial só pode ocorrer a partir do
nosso Eu verdadeiro, quando percebemos nossa plena unidade com o Cristo. Portanto,
o pré-requisito para amar como Jesus nos pede é ter acesso ao nosso Eu
superior. E isso não é pouca coisa!
Ascender a
este novo estado de consciência, tornar-se uma nova criatura, vivenciar o Eu
superior, a união com o Cristo, são metas realizáveis.
Disciplinar
e conter o ego são apenas um primeiro passo. Quando vivenciamos nosso Eu
superior, podemos finalmente descobrir QUEM SOMOS NÓS. Podemos então experimentar
o Reino (que está dentro de nós). Vamos então entender porque Jesus disse: “eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância” e também “vos ensino
isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa”.
Na segunda
parte deste blog vamos aprender mais sobre a experiência do Reino.
FIM DA PARTE I